domingo, 25 de setembro de 2011

SONHO DE CRIANÇA



         Laurinha era uma criança muito amada, mas vivia numa redoma. Isso, porque seus pais haviam perdido as esperanças de terem mais uma menininha, mas quando dona Maria engravidou aos 43 anos,  acharam que Deus estava dando uma nova oportunidade. Embora tivessem outros quatro filhos, sentiam um enorme vazio deixado pela perda de suas três meninas, e por isso, imaginavam que essa criança viria para preencher o espaço que as outras deixaram...
 Crescia numa família de poder patriarcal, com muito carinho e brinquedos, mas sem liberdade.
Uma menina muito ativa, curiosa e sonhadora. Era muito comum vê-la debruçada na janela observando as outras crianças que brincavam na rua, sonhava com a liberdade de um dia estar ali, correndo, brincando de amarelinha, adedonha, enfim, todas as brincadeiras que faziam parte de sua época.
Quando seu pai viajava, aproveitava a distração de sua mãe, que se ocupava com afazeres domésticos e então fugia. Ficava no portão da casa olhando e sorrindo com as outras infantes que brincavam. O desejo de se misturar a elas era muito grande, mas logo aquele momento mágico deixava de existir porque alguém sempre a surpreendia e mandava-a entrar. Só lhe restava sua solitária janela.
Recitava e cantava músicas que ela mesma imaginava, nascidas de seu pequeno coração. Sentia muita vontade de passar seus versinhos para o papel, mas ainda não sabia ler e escrever. Sua mãe, por ser analfabeta, nunca pôde copiá-los, mas a incentivava dizendo que achava tudo muito lindo. Dona Maria era a única pessoa que tinha paciência de ouvi-la.
Não existia televisão, computador, brinquedos eletrônicos, nada que temos hoje. A televisão surgiu no Brasil no ano em que ela nasceu em 1950. Seu pai foi ao Rio de Janeiro e veio de lá com a novidade: _“Podemos ver o artista numa telinha! Chama-se  televisor!”  Ele disse para Dona Maria: _” É fantástico ver a Emilinha Borba cantando e muitos outros artistas...”
Ficou deslumbrada com aquela notícia e sentiu desejo de ver também o tal aparelho. Queria ver Ângela Maria, de quem era fã!
Ele costumava dizer que morrer sem conhecer o Rio de Janeiro, era morrer sem nunca ter vivido de verdade!
         Todas as tardes sua mãe a arrumava para que seu pai a levasse para passear. Ela se sentia importante ao lado dele, e não escondia o orgulho quando os amigos a elogiavam dizendo que mais tarde os “gaviões” voariam sobre sua casa porque ela era uma mocinha muito bonita. Em resposta mostrava a cintura para exibir seu cinto e dizia que para os gaviões ele reservava uma boa sova. Eram momentos de descontração...
O Senhor Laurentino era um homem muito extrovertido e culto. Era comum vê-lo sentado numa roda de bons amigos à tardinha, contando causos com sua filha no colo. Gargalhavam muito. Mesmo com sua vidinha limitada, Laurinha era feliz.
Não podia ter amiguinhas, mas se contentava em brincar com suas bonecas e inventava historinhas para contá-las. Terezinha, uma prima vinda do interior, foi sua primeira amiga e a pedido dela, o senhor Laurentino permitiu que Marlene, filha de uma vizinha, freqüentasse sua casa para brincar, porém a menina nunca poderia retribuir a visita, a menos que sua mãe ou seu pai fosse também visitar os amigos. E a vida seguia o seu rumo.
A criança crescia em total inocência. Seu pai era seu herói! Todas as histórias que inventava, havia um personagem bem parecido com ele. Como eram contos de uma criança que nem sabia ainda escrever, se perderam.
Seus pais queriam protegê-la das cruéis realidades da vida. Nunca falavam em morte de pessoas. Para a pequena Laurinha, só os animais morriam.
O tempo passou. Em 1957, com seis anos de idade, fazia poses para uma foto na sala de sua casa, para orgulho de seu pai que aniversariava naquele dia 23 de junho, comemorava a vida aos 60 anos.
Chegou o mês de agosto, o dia oito amanheceu chuvoso, triste, parecia anunciar algo funesto. O Senhor Laurentino sentiu-se muito mal e tendo um AVC hemorrágico (derrame cerebral) começa a agonizar em seu leito. O médico da família, após um breve exame, desengana-o e a pequena nada entende.
 Olha para seu pai que já não podia mais falar e nem movimentar o lado direito de seu corpo e lhe diz: _“Bença pai!
Ele nada respondia e ela novamente lhe pede que a abençoe, então o homem, num esforço quase sobrenatural, ergue sua mão esquerda e, num gesto mudo e dolorido, abençoa sua filhinha. Esta foi sua última ação!
           Seus irmãos mais velhos choravam em total desespero na sala e sua mãe sofria muito, mas a menina que nunca vira um adulto chorar achou engraçada aquela cena. Não sabia o que estava acontecendo.
Amanheceu o dia. Seis horas. Seu pai já arrumado com seu terno de casimira inglesa descansava em seu leito frio. Terezinha, sua prima, convidou-a para sair, teria que comprar velas. Pediu autorização ao pai, que nada respondia, entendeu que não haveria problemas. Laurinha sentiu uma felicidade que nunca havia sentido antes, uma estranha sensação de liberdade tomou conta de seu pequenino coração. Apanhou um galho que havia no meio da rua, começou a dançar e a cantar. Era inexplicável o que sentia!
Vencida pelo cansaço dos acontecimentos, adormece recostada na cama de seu pai e nem sente quando sua mãe a troca de lugar, ao levantar-se percebe que na sala de casa há muitas pessoas que observam caladas o seu pai que já não estava mais no quarto e sim deitado em uma caixa com muitas flores. “Que coisa era aquela?” Ela pensou.
Foi aí que, sem entender o que se passava, foi à cozinha e pediu à vizinha (D. Ormira) que ajudava sua mãe naquele momento difícil, que lhe desse uma caneca de café com leite e um pão com manteiga. A senhora a atendeu, mas Laurinha queria na caneca de alumínio de seu pai, o que também foi atendida. Dirigiu-se para a sala e diante daquele esquife chama por seu pai: _“Pai, acorda, já ta tarde, o senhor tem que tomar seu café, ta todo mundo te olhando, acorda, pai.”! Ele não podia atendê-la, pediu a uma das senhoras que ali estava, para que segurasse o desjejum, voltando-se para seu pai e sacudindo-o diz: _ “Pai anda logo, acorda pai. Toma seu café.”.
Algumas pessoas emocionaram-se com a cena de inocência enquanto que outras riam. A pequena revoltou-se e falou para todos: _ “Por que vocês tão aqui? Nunca viram ninguém dormir, não? Meu pai ta dormindo e vocês ficam ai olhando pra ele?
Nesse momento, a senhora que segurava a caneca chama a menina e lhe diz: _ “Minha criança, seu papai não vai mais acordar, ele foi para o céu morar com Deus...”.
        Laurinha: _ “Meu pai está dormindo sim, você quer ver? Eu vou chamar ele e ele vai acordar logo.”.
        A mulher: _ “Não, minha querida, seu pai morreu.”
        Laurinha _ “Não, ele não é bicho, só os bichos morrem. Meu pai não é bicho! Não é galinha, nem pato e nem porco, como ele pode morre? Ele é gente e gente não morre nunca”.
        A mulher: -“Quem falou isso pra você, meu bem? As pessoas não morrem como os bichinhos, elas morrem diferentes, vão para o céu morar com Jesus”.
        Laurinha: _ “Eu não quero que ele vai morar com Jesus! Pede pra Jesus pra trazer ele de volta, para não aceitar ele lá na casa dele, ele é meu pai e eu quero que ele fique comigo aqui em casa. Ele me leva pra comprar balas, conta historinha pra mim, não quero que ele vai embora...”
        Sua mãe lhe chama e diz que seu pai tem que morar lá, e que elas tinham que aceitar a decisão de Jesus, porque  ele era muito especial para ficar aqui na terra. Não voltaria mais.
A menina não queria entender o que se passava. Foi a primeira experiência dolorosa de sua vida e, diante da dor que lhe rasgava o peito, fez seu primeiro poema, aos 10 anos de idade. Um desabafo melancólico! Aquele dia ficou marcado em seu coração feito tatuagem!
Depois de alfabetizada, era obrigada a ler todos os dias uma historinha diferente e depois contar o que lia, era uma exigência de Dona Maria!
Detestava essa obrigação, mas com o tempo, tomou gosto pela leitura e queria fazer parte dos livros!
Era considerada pelas amiguinhas e colegas de escola como “A Pateta”.  Só porque gostava de ler, parecia diferente, mas ela não se importava com isso.
Compôs seu primeiro poema e não parou mais de sonhar. Continuou escrevendo, mas precisava esconder tudo, debaixo de uma tábua solta no assoalho de seu quarto, para que não fossem rasgadas por seu irmão, por quem era perseguida.
 A arte, para ele, era privilégio dos homens!
Deveria viver como mulher, aprender a ser boa dona de casa... Poderia estudar; ser professora, mas nunca se misturar com arte. Todavia, continuava a sonhar. Queria ser artista!
Laurinha cresceu, casou-se e viveu 29 anos de poucos momentos de felicidade, procurou a liberdade no casamento e encontrou a decepção. Teve cinco filhos, divorciou-se e aposentou-se como enfermeira. Passou por sérios problemas de saúde sem nunca desistir da vida. Perdeu um dos filhos na cruel realidade urbana. Transformou sua dor em poesia, porque a saudade é o atestado do amor!
Escreveu vários poemas ao longo de sua vida e engavetou-os.
Após o divorcio, descobriu-se liberta para novamente sonhar e perseguir seu sonho de menina. 
Aos cinquenta e oito anos fez um curso de roteirista, com a finalidade de escrever também para o cinema. Escreveu vários esquetes, crônicas e peças para teatro. Agora aos sessenta anos está trabalhando em seu primeiro roteiro para o cinema. Todos seus textos estão registrados na Biblioteca Nacional.
Laurinha não sente que a velhice seja empecilho para se viver, porque não se fica acéfalo com o tempo, aprende-se com ele. Ela acredita que não há sonhos impossíveis, e sim difíceis de realizar e por isso nunca desiste de seus sonhos. Quando a cortina do tempo se fechar neste grande palco e ela estiver na coxia da vida, ainda assim estará torcendo por todos que sonham e perseguem seus sonhos.
Finalmente agora vive o seu sonho de criança, encontrou a tão almejada liberdade e, muito feliz, pode escrever em paz.

Laurinha é Laurimeri de Oliveira, nascida em 19 de dezembro de 1950, em Colatina, Espírito Santo. Enfermeira aposentada, hoje se dedica unicamente à sua real paixão: Escrever!
Assina com o pseudônimo de Mary Trarbach em homenagem a sua mãe, Maria Trarbach, sua grande incentivadora, amiga e amor além da vida.
A seguir o poema que ela fez para seu pai:

P A P A I. . .
                                            
Texto de Mary Trarbach.

Eu perguntei pra Deus,
Por que tanta aflição?
Se eu nasci pra ser feliz
Ou pra chorar, meu coração.

Meu papai foi embora,
Não sabia que gente morria.
Foi a primeira experiência dolorosa
Que passei em minha vida...

Eu só tinha sete aninhos,
Não sabia escrever,
Queria passar para o papel,
O que tinha acabado de acontecer.

O vi ali, deitado,
Nada me respondia,
Nem o café que eu levei,
Ele não tomou, não queria...

Então a mulher falou:
Ele não pode te escutar,
O seu papai se foi
Para nunca mais voltar.

Foi aí que eu senti,
A cruel realidade,
Meu pai foi para o céu
Eu sentirei muita saudade...


Colatina, 12-01-1961.
Seu primeiro texto aos dez anos de idade.



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